A "boa moça" te atrapalha no trabalho?
Nesta edição da Bem no Trabalho te ajudamos a pensar nos comportamentos ruins para a carreira que nos ensinaram e repetimos sem nem perceber
Não deixe o título te iludir: não vamos falar mal de nenhuma mulher com quem você trabalha. O negócio aqui é que andei pensando - ainda na ressaca do Dia Internacional da Mulher - em como muitas coisas que nos ensinaram - e continuam ensinando para as meninas por aí - podem atrapalhar de maneira inconsciente a nossa relação com o trabalho.
Meu interesse em escrever sobre isso começou há algumas semanas, quando precisei pedir cartas de referência para uma oportunidade bacana para a qual eu queria me candidatar. Veja bem, não foi a minha primeira vez. E eu pedi para amigos queridos com quem eu já trabalhei - e eles, muito maneiros, responderam com gentileza e prontidão: “claro que eu topo. Ligia !”. Simples, né? Té que foi.
Mas na minha cabeça, o processo de pedir foi meio sofrido: fiquei estressada e desconfortável antes, durante e depois.
Fiquei com a impressão de que aquele meu incômodo em perturbar os meus queridos colegas na paz de suas rotinas atribuladas estava meio exagerado: será que é porque eu detesto pedir favor? Será que é porque me causa pavor pensar em pedir para alguém me elogiar? Imagina então se eu precisar brifar ou sugerir alguns elogios para a pessoa assinar? Que sufoco.
Dei uma desabafada no Linkedin sobre isso, e várias mulheres compartilharam que sentem “travas” parecidas. “É que acho que essa minha trava tem a ver com várias coisas que eu aprendi, criada que fui para ser uma boa menina: a não incomodar as pessoas, a não me autoelogiar, a não pedir favor....são todas atitudes simples e OK que vejo homens fazerem com bem mais desenvoltura”, filosofei eu na rede do mundo dos negócios.
Logo me vieram à mente outras dificuldades que muita gente enfrenta em cargos de liderança e podem ter origem ensinamentos equivocados que não cansamos de ouvir e repassar para outras mulheres como padrão: medo de desagradar os colegas, asco em comunicar más notícias; pavor de contrariar ou criticar; incapacidade de pedir aumento ou de fazer propaganda sobre seus feitos; pânico de exigir mais dinheiro, fobia de dizer não….
Tá atenta ou só repetindo o que escolheram para você?
Me deu vontade de conversar com mais gente sabida sobre isso, ainda mais nessa época em que tanta coisa se fala sobre nós por causa do Dia Internacional da Mulher.
E lembrei na hora da Ana Johann, talentosíssima escritora, roteirista e diretora de cinema que eu conheci ano passado, na Flip. Ela é autora do romance “História para matar a mulher boa”, publicado pela Editora Nós, e dirigiu e roteirizou o longa “A mesma parte de um homem” (que dá para assistir no Globoplay), que lhe conferiu o prêmio Helena Ignez como destaque feminino na 24° Mostra de Tiradentes, e melhor roteiro original pela Associação Brasileira de Autores Roteiristas (Abra).
Eu li o livro, vi o filme (recomendo os dois!) e acho que tem tudo a ver com a conversa. O livro conta a história de Helena, “uma mulher comum, uma mulher boa. Uma mulher que pouco pensou em suas escolhas e teve sua história construída pelo padrão, pela ordem natural das coisas que, quando encarada com desatenção, conduz a mulher a um enredo no qual ela é coadjuvante da própria vida”.
A trama mostra a gradual assimilação de Helena sobre quão pouco refletiu sobre suas escolhas e foi repetindo os padrões de sua família conservadora do interior; a vila rural em que Helena nasce tem aquele clima meio Elena Ferrante em que a violência doméstica e o medo velados fazem parte da vizinhança.
Daí o livro vai mostrando o caminho de volta de Helena para si mesma: rompendo com ideias enraizadas e, como entrega o título, matando a “mulher boa” que se tornou – uma mulher complacente, comportada e dócil. E fatalmente infeliz. (Você pode ler mais sobre o livro neste artigo da Marie Claire ).
Entrevistei a Ana sobre a mulher boa no trabalho e foi uma delícia de conversa. Vou te contar o que ela disse!
Mas antes, um recadinho:
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Embora a obra dela não seja autobiográfica, dá para ver muito dos lugares em que a Ana viveu e referências de experiências pessoais. Ela me explicou como funciona essa inspiração:
“Eu trabalho com narrativas pessoais, e empresto algumas situações [para os personagens]. Em história para matar a mulher boa tem todos os lugares em que eu morei, eu morei nessa vila rural. Eu tenho daquela menina que ao mesmo tempo tinha traços subversivos e questionadora, mas que pelo aprendizado foi aprendendo que ser assim não não era bom”.
A escritora conta que já sentiu o efeito dessas amarras invisíveis até no próprio corpo. Houve uma época da vida adulta da Ana em que ela tinha dor de garganta quando não conseguia dizer o que pensava. A Helena do livro também vive esse problema.
“Eu tinha uma coisa de garganta que eu não tinha na infância e fui ganhando conforme eu fui para o mundo e me relacionando com as pessoas. Eu fui encolhendo e depois e tive que transgredir isso: tanto que virei diretora de cinema, no ‘A mesma parte de um homem’ eu tive que dirigir uma equipe de 40 pessoas, hoje a minha comunicação é outra. Mas eu tive que passar por um profundo processo de autoconhecimento para entender porque eu não podia me comunicar”.
Então aprendemos que o caminho para se livrar dessas crenças que nos atrapalham e ser uma líder poderosa como a Ana envolve autoconhecimento: olhar para si, vê o que é seu de verdade e o que você “herdou” sem querer, e desaprender o que for preciso.
Li esta entrevista dela ao site Escotilha e ela explicava várias crenças que teve que “desaprender” para alcançar a carreira bem-sucedida que ela tem hoje.
Dá uma olhada em alguns trechos:
Johann: “Queria falar sobre o arquétipo da menina boa. Há muitos arquétipos e infelizmente por questões culturais os homens ao nascer já têm um cardápio bem mais extenso pra habitar. É como se ganhássemos uma moldura que mesmo não cabendo nela totalmente vamos dando um jeito de se acomodar, se aniquilar ou explodir”.
“Eu sempre quis ser escritora antes mesmo de ser roteirista e diretora. Mas por questões de busca e também de gênero encontrei o roteiro e a direção como forma de expressão primeiro. Durante muito tempo hesitei até porque não me achava boa suficiente para escrever livros de literatura”.
Será que a moça boa tá comandando sua carreira?
Para a Ana, além desses moldes apertados em que tentam encaixar as mulheres desde sempre, a nossa relação com o trabalho tem também um forte viés geracional.
Johann: “Eu não sei em que ano você nasceu, eu nasci em 80 [Eu, Ligia nasci em 79]. E a gente cresceu com aquele ideal que a gente seria feliz no trabalho e no trabalho a gente conquistaria tudo. E li um artigo que falava dessa diferença da nova geração, porque para eles trabalho é trabalho e por isso que eles não fazem hora extra, chegou o horário e tchau; eles veem o trabalho como algo que precisa ser cumprido e não algo romântico. Acho que a gente está numa época de desromantizar o trabalho, as relações”.
Eu, Ligia, uma moça boa de marca maior do interior do Paraná [boa filha/boa esposa/boa profissional/boa cristã rs] em desconstrução, perguntei: Ana, você acha que a mulher boa ainda nos atrapalha no trabalho? Como no exemplo da minha carta de referência com que eu abri este texto?
Johann: “Como eu acho que as pessoas se ocupam muito do trabalho da mulher de graça, porque temos esse estereótipo da cuidadora, de fazer muitos favores, então a gente se incomoda em outro grau”, diz. A cineasta conta que, no caso dela, que trabalha com escrita e criatividade, também nota esse tipo de comportamento. “Eu já passei por várias situações das pessoas falarem. Ah dá uma lida neste texto meu? Sendo que tem toda uma elaboração para você dar o seu feedback, e é o seu trabalho”.
O primeiro passo para começar a quebrar tal padrão é aprender a dizer não.
Johann: “Eu cheguei a um ponto que se as pessoas não têm noção para pedir certas coisas, eu também posso dar essa devolutiva nesse mesmo grau e dizer não. Porque se você tem um outro lugar social você se sente mal de dizer não. Mas é justamente quando a gente consegue dizer não que vêm mais possibilidades. Porque senão a gente ocupa todo o nosso tempo com várias coisas e a gente não tem energia para a gente mesmo”.
Ligia, você está então dizendo que é pra gente ser tudo eshcrota e não ajudar ninguém ? (Leia a frase acima com sotaque carioca igual da Yasmin Brunet, do BBB).
Não gente, eu ainda sou bacaninha e quero continuar a ser. Mas que seja:
- quando você quiser, com quem você quiser;
- por vontade, não por obrigação;
- e que você se permita pedir favor, se elogie e tenha mais atitudes de “moça má” (ou de homem? rs) de vez em quando sem tanta neura. Combinado?
- e para você menino que me lê: vamos cuidar do que ensinamos para as menininhas das próximas gerações?
Para ler mais
Como vencer a distração: Fiquei assustada com essa estatística que muito me representa: diz que o ser humano médio se distrai a cada 40 segundos quando está trabalhando em frente ao computador.
Os humanos são programados para distração. O sistema de atenção do nosso cérebro está programado para responder a qualquer coisa que seja prazerosa, ameaçadora ou nova. Este artigo traz umas dicas boas, como apps que bloqueiam distrações, escrever intenções para o dia ou inventar deadlines.
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Mulheres sem voz? Amei e fiquei triste ao ler esta entrevista publicada na edição especial de dia da Mulher da Revista Gama. A
(uma das amigas que eu já fiz no trabalho BTW) entrevistou Mariza Tavares, jornalista, autora do blog “Longevidade: Modo de usar”, sobre como o etarismo prejudica a carreira das mulheres que chegam à menopausa. Tem tudo a ver com este nosso papo de hoje e eu recomendo que você leia, mas a dica principal é: lute pela sua voz. Destaco este trecho:Mariza Tavares: Você tem que fazer um esforço para se manter relevante. Tem que tentar juntar na sua cesta mais de uma coisa que faz bem. A soma delas vai fazer com que você seja uma profissional interessante. Para envelhecer bem, eu gosto muito do que diz o centro de longevidade da Universidade de Stanford: você tem que se manter com uma aptidão física boa, então, pelo amor de Deus não vai afundar no sofá, porque não vai fazer bem para você, que vai ficar inflamada de cima abaixo; você tem que se manter afiada, ou seja, aprender o tempo todo, ser curiosa sobre as novas coisas que estão acontecendo porque a chance de ficar para trás é muito grande, a fila é enorme e tem um bafinho no seu cangote; e você tem que ter segurança financeira, ou seja, tem que aprender a poupar, outra grande dificuldade das mulheres. Elas têm dificuldade para pedir aumento e para guardar dinheiro, porque parece que elas estão sendo egoístas, elas querem fazer as coisas para os filhos, para todos.
Como gente esquisita relaxa para dormir: Eu sempre tive vergonha de contar, mas eu durmo vendo séries repetidas. Geralmente é How I met your mother, mas pode ser Friends ou New Girl, dependendo da época. Às vezes tento Gilmore Girls, mas mesmo eu já tendo visto mil vezes fico muito envolvida e não funciona kkk. Sei lá, ajuda meu cérebro a não ficar atrás de informação nova ou descansar. Daí descobri que a Selena Gomez faz exatamente a mesma coisa para dormir e tou mais assumida rs.
Deixo vocês com esse recadinho final do Mujica: a vida não é só trabalhar.
Fica bem, beijo e até a próxima,
Ligia
Crédito: Agradecimentos ao Tércio Silveira, da Forno a Letra, pela revisão.
Que texto perfeito para minha menina boa que se sente culpada por não ter feito trabalho extra no sábado. No dia de não-trabalho, ela tem preferido cuidar de si e dizer não pra firma lhe desperta a menina má. 😭