Sabe "ativar" sua resiliência? Dá para planejar, aparentemente
Nossa habilidade de continuarmos a nos adaptar, a melhorar e sobreviver pode ser planejada, diz a ciência. No trabalho, ficar mais forte é engolir sapo sem chorar?
Eu tinha escrito uma edição da newsletter bem bonitinha. Era sobre a Madonna, sobre o Bowie, o Prince, e outras pessoas incríveis que tiveram que se reinventar para se tornarem quem realmente são. É um tema interessante, sobre o qual podemos voltar a conversar no futuro. Tentar se reinventar é difícil, mas é uma causa na qual vale a pena investir, na minha opinião.
Vou deixar aqui o Prince para você ouvir de recordação deste post que nunca vivemos:
Mas daí eu estava pronta para publicar, e o Rio Grande do Sul inundou. E tudo o que eu tinha escrito ficou de repente meio sem sentido, meio supérfluo, achei que não era hora para ficar falando de ser feliz no trabalho. Decidi adiar e pensar em outro tema.
Enquanto isso, fiz o que tenho me habituado a fazer para me acalmar em tragédias de grande escala: trabalhar e escrever sobre elas. Agora que sou freelancer, escrevi para a Deutsche Welle e para a BBC News Brasil, caso você queira ler alguma coisa. Na pandemia, eu sentia uma coisa bem parecida: via um problema e tentava transformar em alguma pauta para reportagem, para ter a sensação de que estava sendo útil. Um exemplo de como o trabalho pode ajudar a nossa mente, às vezes.
Estava eu nessa de trabalhar bastante e esperar outra ideia de tema para a newsletter quando fiz uma entrevista com o planejador urbano Robert Olshansky, um cara que ajudou a planejar a reconstrução de várias áreas atingidas por desastres climáticos: New Orleans, depois do Katrina; Indonésia, depois de muitos terremotos e tsunamis; Japão, China, Nova Zelândia.
E uma fala dele durante a conversa, que fizemos por Zoom, me inspirou a voltar aqui e contar para vocês. O que tem a ver com o tema da newsletter? Meio que tem.
Mas antes:
É justo dizer que há motivos para ficar indignado e achar que a população foi menos protegida do que deveria neste caso do Rio Grande do Sul, certo? O dinheiro de prevenção não foi investido, os avisos dos cientistas foram ignorados, os mecanismos que deviam ter protegido as cidades falharam, a vegetação nativa e as nascentes dos rios que deveriam ter servido de esponja para evitar as inundações foram devastadas. Tudo errado. Ele concorda com essa indignação que eu e muita gente sentimos neste momento, claro. Prevenir desastres é papel importante do poder público.
Mas daí, talvez para dar uma palavra de consolo para mim e para os brasileiros desalentados vendo um estado inteiro debaixo d’água - e tanta dor, tanta destruição, tanta gente em sofrimento agudo - ele me disse uma coisa interessante. Separei o trecho aqui embaixo:
“Há um termo usado exageradamente que eu tento não usar quando eu escrevo, mas do qual eu ainda gosto muito, que é resiliência. Porque cobre muito da nossa habilidade de continuar a nos adaptarmos e sobreviver, e melhorar. Não prevenimos nada, nós vamos indo. Como faz para ativar essa resiliência?
Se você quer planejar a resiliência o jeito de fazer é pensar em ciclos. Planejar com antecedência a recuperação do próximo desastre. E então planejar o que vai acontecer no desastre depois desse desastre… isso é pensamento de resiliência, e é isso que precisamos ser capazes de fazer.”
Claro que ele estava falando da resiliência às mudanças climáticas. Mas também sobre a resiliência humana, essa força que nos faz sentir um instinto de sobrevivência e nos adaptarmos diante dos problemas, climáticos ou não: perdas, crises, problemas de saúde, e por que não citar, crises relacionadas ao trabalho. Se você pensar aí, com certeza já sobreviveu e se adaptou a diversas situações difíceis ao longo da vida.
A verdade é que dificilmente vai chegar uma em que a gente não terá problemas: o imponderável, o sofrimento que nos leva ao limite, isso, ao que me parece, faz parte da experiência de estar vivo.
Mas aí a ciência diz que nós humanos temos essa necessidade de, em meio ao sofrimento, planejar como pretendemos nos adaptar e viver melhor para evitar que aquilo se repita. Ou nos preparar mais para, se voltar a acontecer, estejamos mais fortes. Isso é resiliência. A boa notícia é que você, humano que me lê, nasceu com ela.
No contexto do clima, vamos realmente ter mais prática e mais planos para conviver e reagir a situações como as do Rio Grande do Sul. Vamos deixar as cidades mais resistentes a água e ventos? Vamos ser mais ágeis em socorrer? Vamos aprender a ser mais solidários e a nos preocupar com a natureza e a segurança de todo mundo? São possibilidades.
Mas o que achei mais bonito nessa fala do geólogo é que a nossa capacidade de adaptar para sobreviver e continuar mais tempo nesse mundo se aplica a tudo: às nossas emoções, à nossa saúde, aos nossos relacionamentos, aos nossos músculos e, por que não, à nossa capacidade de trabalhar e nos sustentar com menos sofrimento. Será que dá?
E dá para falar de trabalho?
Tenho um amigo que diz assim: “se trabalho fosse tão legal a gente que pagaria para ir lá, e não o contrário”. É uma piada, mas acho que toda carreira e todo emprego envolve alguns momentos desagradáveis. Engolir sapo; não ser reconhecido pelo chefe; ganhar menos do que acha que se merece; cometer erros, questionar a própria capacidade. E até o mais basicão: acordar cedo, pegar ônibus, chegar tarde em casa, sentir estresse, ficar cansado. Não conheço ninguém que trabalhe e não passe por algum tipo de insatisfação.
E todo mundo, à medida que passa os anos trabalhando, vai ganhando resiliência, certo? Aprendo o melhor jeito de me organizar para não me atrasar (durmo cedo? coloco dois despertadores?); o melhor jeito de não fazer pergunta boba durante uma entrevista (pesquiso tudo sobre a fonte? leio todas as entrevistas que ela já deu?) Faço um roteiro e ensaio antes?); ou o melhor jeito de reagir se meu chefe gritar comigo (respondo com firmeza sem perder o controle? Paro a discussão e peço respeito?). Se você analisar por aí, já se tornou mais resiliente em um monte de coisas, aposto.
Eu com certeza hoje sou muito mais forte do que era quando comecei a trabalhar, há 20 anos. Mas é importante reconhecer que desde aquela época eu já mostrava alguma resiliência: conseguia morar em outra cidade sozinha, trabalhava com toda a minha dedicação entrando às 7h da manhã, sofria mas seguia em frente quando algo dava errado, sem pensar muito sobre o assunto. Ia melhorando de salto em salto, comportamento comum para quem não tem outra alternativa a não ser trabalhar.
A diferença é que agora eu penso em ficar mais resiliente de maneira consciente: naquela época, era tudo instinto. Graças à maturidade, essa coisa linda que eu amo - agora meus esforços são assumidos e intencionais: sei que estou buscando a cada dia aprender a me fortalecer, me proteger e a levar a vida de uma maneira mais leve. Queria ter aprendido antes que isso era possível.
E o que muda quando você decide tentar “planejar a resiliência”, como recomenda o caríssimo professor Olshansky? É que você percebe que a todo momento algumas escolhas se apresentam na vida, e o caminho é tentar manter seu objetivo em mente - dentro das possibilidades de cada momento.
Um exemplo: não vivo mais aquele ditado “o que não te mata te fortalece” a todo custo. Sempre que possível, eu escolherei ficar mais forte sem quase morrer. Quase morrer toda hora faz mal para a saúde! Eu adoro ficar mais forte sem quase morrer, é bem mais gostosinho, rs.
Hoje em dia, salários riquíssimos para trabalhar em ambientes tóxicos, em que eu sei que serei desrespeitada, ou que têm fama de deixar todo mundo doente, por exemplo, não me convencem. Ligia, você é herdeira? Não, caro leitor, preciso trabalhar todos os meses de minha vidinha por tempo indeterminado. Não tem plano B, a não ser que meu conje acerte na Mega-Sena (eu nem jogo, para ajudar rs).
Meu plano de resiliência é procurar caminhos mais saudáveis possíveis de ganhar dinheiro. Claro que é um privilégio que eu não tinha há 20 anos: sou mais minha amiga, sou mais experimentada, sei mais do meu valor e dos meus talentos e, para mim, respeito no trabalho é o basicão.
Em tempo: a maior parte da população do Brasil precisa passar o dia todo trabalhando, somada a horas no deslocamento, para ganhar pouco e não há alternativa no horizonte. Eu sei, e a ideia não é “cagar regra” (pardon my french) ou dar conselhos alienados. É só um treino para, nos nosso sonhos profissionais, incluir isso também: quero um dia trabalhar de maneira mais leve, menos sofrida, mais saudável. Parece óbvio, mas não é.
Até outro dia, nem eu pensava assim.
Outra estratégia: maromba da resiliência
Não vou mentir não: eu nunca gostei e ainda não gosto de exercício físico. Faço por obrigação, sempre fiz pensando em ficar mais magra ou mais bonita, e tenho muita dificuldade de levantar cedo da minha cama para atividades não remuneradas. A ciência diria que eu fui diagnosticada com preguiça aguda logo na infância. Mas acredito nos médicos que dizem que todos os nosso problemas de saúde serão prevenidos com exercício, e me esforço para obedecer.
Mas eu sou humana, e estou me adaptando, como recomenda o professor da entrevista. Tenho aprendido, bem recentemente, a usar a atividade física para me sentir melhor, quando preciso.
Sou ansiosa, pilhada, criativa, e muitas ideias passam pela minha cabeça ao mesmo tempo, característica que aceitei, amei e tenho tentado aprender a lidar. Hoje em dia, como freelancer em home office, aprendi a identificar momentos em que minha ansiedade tem picos; ou quando meu hiperfoco se prolonga muito e estou trabalhando por horas sem levantar. Sei, madura e sábia que sou depois dos 40 rs, que isso faz mal.
Quando me vejo assim, paro: pego meus cachorros e vou caminhar. Ou faço aula de ioga no aplicativo. Ou vou para o pilates, onde toda a tensão dos meus ombros dá um tempo. Isso tudo não é exercício para eu ficar bonita (se eu ficar agradeço, não é mesmo?) Mas para eu me sentir bem. Para me sentir calma e relaxada. Meu cérebro funcionar melhor. É bom demais mesmo. Um salve para todos os médicos que sempre mandaram eu fazer isso e eu ignorei ao longo dos anos.
Se queremos sobreviver ao trabalho e às agruras desse mundo cheio de desastres, mas que amamos e onde queremos continuar por bastante tempo para ver tudo, precisamos fazer exercício. Caminhar, alongar, e ganhar músculo. Começa aí!
Para ler
Saúde espiritual da Gen Z - Um relatório que tem a ver com resiliência. Muitos podem torcer o nariz achando que é papo de religião, mas um sinal de nossos tempos é que a consultoria McKinsey, super focada no mundo dos negócios, dedicou uma pesquisa ao tema: “In search of self and something bigger: A spiritual health exploration”.
Achei interessantíssimo - a começar pelo fato de eles investirem nesse tema, o que é pouco comum. Destaco aqui algumas conclusões interessantes:
- a pesquisa da McKinsey Health Institute mostra que 41.000 pessoas dizem que a saúde espiritual é importante para muitos, independentemente da idade, país ou crenças religiosas; pode estar ligada à religião, mas também apenas a sentir que tem uma vida com propósito;
- Mais de 80% dos entrevistados no Brasil, na Indonésia, na Nigéria e no Vietnã disseram que a saúde espiritual era muito ou extremamente importante, por exemplo, em comparação com menos de 45% dos entrevistados na Irlanda, nos Países Baixos e na Suécia;
- A saúde espiritual pode ser profundamente pessoal, mas as conclusões do estudo sugerem que o local de trabalho pode ser um dos muitos lugares onde os indivíduos experimentam um sentido de propósito e uma saúde espiritual positiva; uma pessoa pode considerar seu trabalho insatisfatório, mas o outro lado também pode ocorrer: as pessoas podem encontrar profunda satisfação no trabalho remunerado ou não remunerado.
Lê aí, que acho que rende boas conversas. Você se preocupa com a sua saúde espiritual? Me conta nos comentários, tenho muita curiosidade em saber!
- Estamos falando demais de saúde mental? - Reportagem do New York Times faz essa pergunta, alegando que, nos últimos anos, a saúde mental tornou-se um tema central na infância e adolescência: adolescentes narram seu diagnóstico e tratamento psiquiátrico no TikTok e no Instagram. As escolas, alarmadas com os níveis crescentes de sofrimento e automutilação, fazem cursos preventivos sobre autorregulação emocional e atenção plena. Agora, alguns pesquisadores alertam que corremos o risco de exagerar.
As campanhas de sensibilização para a saúde mental, argumentam, ajudam alguns jovens a identificar doenças que necessitam urgentemente de tratamento – mas têm um efeito negativo nos outros, levando-os a interpretar excessivamente os seus sintomas e a considerarem-se mais perturbados do que realmente são. Será?
E para quem quiser ouvir mais sobre a entrevista com o geólogo, falei sobre ela aqui no podcast DR Revista:
Fica bem. E cada dia mais forte!
Beijos,
Ligia
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Crédito: Agradecimentos ao Tércio Silveira, da Forno a Letra, pela revisão.
Sobre a autora
Sou jornalista há 20 anos, com MBA em Finanças e especializada em inovação digital, políticas públicas e temas sociais. Longas passagens pelo G1, Valor Econômico e BBC News Brasil, onde fui editora por 5 anos. Ouvir e histórias que merecem ser contadas é a minha paixão. Você pode conhecer um pouco do meu trabalho clicando aqui