Uma vida de trabalho que me fez livre - e o luto que faz a gente repensar devagar
Edição especial em que peço licença para contar a história de quem me permitiu ser feliz no trabalho: minha mãe, a Sueli, que mudou tudo antes de partir tão cedo
Faz um mês que estou com o texto desta newsletter pronto para enviar. Acredita? Pronto mesmo, planejada e escrita. Só precisava mesmo sentar, abrir o computador e clicar no botãozinho deste nosso amigo Substack. Mas todo dia eu tentava e não conseguia nem começar. Nunca imaginei que conseguir sentar e abrir o computador, como estou fazendo agora, pudesse me dar uma sensação de alívio.
Semana passada, na quinta, fez um mês que minha mãe faleceu. O nome dela era Sueli, e ela viveu até os 67 anos e tratava um câncer desde 2015. Morreu na casa que ela tinha reformado há pouco tempo, no terreno dos meus avós, onde ela cresceu, em Londrina, no Paraná. Partiu abraçada pelas três filhas. Meus avós, os pais dela, ainda moram lá, vivos, lindos e saudáveis, de coração partido olhando para a casinha dela.
Meu plano era, há um mês, fazer esta edição especial da newsletter com um texto sobre ela que eu escrevi em alguma madrugada das duas semanas em que eu pude passar cuidando dela. Por que, convenhamos, eu sabia que não conseguiria escrever algo sobre nenhum outro tema.
O luto não me obedece
Mas por que eu estou contando isso? Primeiro porque perder a mãe é desses eventos tão marcantes na nossa vida que acho legal compartilhar com quem me conhece e acompanha o meu trabalho. Porque a verdade é que o luto, estou aprendendo, tem o poder de mexer com tudo mesmo, até coisas que eu não imaginava.
Faz mais de um mês que eu não me reconheço e não me sinto “ùtil” para nada. O que para mim é horrível, porque meu cérebro é bastante acelerado e me orgulho de ser uma resolvedora compulsiva de problemas.

Isso antes; não na minha versão atual, em que minha personalidade foi suspensa. Não consigo escrever, estou mais lenta, deixei de ser multitasking para virar tasking, uma tarefa de cada vez, talvez meia, e mal feita. “Pareço um homem”, foi a minha piada que eu fiz para o meu chefe (desculpa homens, pelo menos meu cérebro ainda curte piadinhas).
Trabalho para ser livre
Outro motivo pelo qual eu quero falar da minha mãe aqui é porque o trabalho teve um papel gigante na vida dela. Você vai entender logo mais. Mas primeiro, já que vamos falar do trabalho dela, tomo a liberdade de deixar um resumo, publicado pela Secretariade Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná (Seti):
A Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná (Seti) expressa profundo pesar pelo falecimento da professora aposentada Sueli Édi Rufini, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), ocorrido nesta segunda-feira, 24 de março de 2025.
Entre os anos de 2011 a 2016, Sueli Rufini ocupou as funções de coordenadora de Ensino Superior e de Ciência e Tecnologia, na Seti, sendo responsável pela coordenação do Prêmio Paranaense de Ciência e Tecnologia, além de feiras de inovação e eventos locais da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, com apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Araucária.
Com graduação em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), a professora Sueli Rufini tinha mestrado em Educação pela UEL e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nos últimos anos atuava como docente na categoria sênior no Programa de Pós-Graduação em Educação da UEL.
A dedicação e contribuição à ciência e ao magistério estabeleceram um legado de excelência e consolidaram sua trajetória como uma liderança de reconhecida relevância. A Seti presta sua homenagem e apoio a familiares, amigos e colegas. Que sua memória continue sendo um exemplo e inspiração para todos.
Não vou conseguir me estender muito mais (alou, tá lenta a coisa ainda), mas vou cumprir meu plano de um mês atrás, que era compartilhar o texto que eu escrevi sobre a minha mãe.
Eu escrevi em alguma madrugada enquanto cuidava dela nas últimas semanas em que ela estava doente, e acabou virando o texto que eu li no funeral. Vai em paz, mãe.
Voltamos na próxima edição a falar de mais assuntos que nos fazem pensar sobre trabalho. A morte, sem dúvida, nos faz pensar sobre isso também.
Eu nunca soube arrumar cama como a minha mãe. Alias, eu nunca soube arrumar nada como a minha mãe. A cama dela sempre teve a quantidade certa de travesseiros, os melhores lençóis, e parecia sempre linda e aconchegante. Nenhuma cama minha jamais ficou parecida até hoje.
Minha mãe parecia multiplicar dinheiro. Era pouco mas ela fazia milagres criando três filhas. O meu de adulta mal sempre dava para mim.
Minha mãe sabia ser acolhedora e gentil com as pessoas. Sabia falar um elogio que eu achava exagerado só para a pessoa se encantar. E encantava. E adorava que todo mundo ficasse tão perto dela, mesmo conhecidos, que não sobrava espaço pra ela esconder nada. Eu nunca consegui ser tão aberta. Minhas paredes são meu escudo.
Minha mãe era muito disciplinada. Como ela conseguiu estudar à noite sem nenhum incentivo e trabalhando numa peixaria durante o dia para pagar os estudos? Pagou a faculdade sendo secretária de um colégio. Mal comia.
Parou a faculdade quando eu nasci. Ninguém queria que ela estudasse, nem meu pai. Engravidou e precisava casar. Adiou o sonho por dez anos, criando a gente naquela angústia, engolindo a frustração.
Depois decidiu nadar contra a maré e voltou com tudo: terminou a faculdade, emendou mestrado, fez concurso. Trabalhou de fim de semana. Ela fez mestrado amamentando a Julia, minha irmã. Como ela conseguiu? E sempre com aquela cama arrumada e aquelas coisas todas bem dobradas.
O sonho dela, quando eu era criança, era que eu montasse um cronograma de estudos da escola e dividisse cada matéria por dias da semana. “Assim você revisa todo dia e não pesa na hora da prova”. Não rolou.
Ou então que eu organizasse meus brinquedos nas gavetas corretas. Uma utopia. Cresci mal arrumando a cama e passando de ano do meu jeito, sem estudar, estudando na véspera, no caos mais criativo do que ajuizado. Perdendo o aparelho e o moletom na escola. Sei lá como eu fiz.
Sempre fomos muito diferentes, como se eu fosse um kinderovo com surpresa que ela não sabia como funcionava e que vinha sem manual de instruções. Faz pouco tempo que ela me entendeu mais, acho. Depois de bem adulta. Aprendemos a falar uma língua comum. E daí o tempo foi pouco.
Minha mãe escapou da pobreza perseguindo a educação. Sofrendo daquele jeito para conseguir instrução bem mais do que seria preciso em um país mais justo, sem romantizar. Mas o fato é que ela usou toda a sua força em se libertar - e se libertou. E daí o tempo foi pouco.
Mas é verdade também que quando uma mulher se liberta - da pobreza, do preconceito, do plano dos outros, da ignorância, do machismo, do casamento infeliz - ela muda o mundo todo. Dos antepassados e das gerações futuras.
Minha mãe mudou o meu mundo e cada vez que eu faço alguma coisa legal na vida, no trabalho ou não - é porque ela me libertou também. E, agora que vejo a comoção pela partida, vejo que um monte de gente se sente mudado pela presença dela.
Obrigada, mãe. Por não desistir só porque era injusto. Por esticar seus limites até onde dava. Por ampliar nossos horizontes.
Vamos ficar bem. Porque assim vc nos deixou. Obrigada. Te amo.
Sobre a autora
Sou jornalista há 20 anos, com MBA em Finanças e especializada em inovação digital, políticas públicas e temas sociais. Longas passagens pelo G1, Valor Econômico e BBC News Brasil, onde fui editora por 5 anos. Ouvir e histórias que merecem ser contadas é a minha paixão. Você pode conhecer um pouco do meu trabalho clicando aqui
Lili, que homenagem lindíssima. Te abraço forte. Saudades de bebericar com você e as cheirosas.
Sinto muito, Ligia. Sua mãe se orgulha de onde estiver, com certeza. Te admiro muito!